Então é assim: a meio desta vida aqui na terra dos doidos e da sujeira, decidi deixar-me de merdas e enfrentar os famosos candongueiros. Enfrentei com relativa facilidade visto que o percurso que faço da minha casa até ao escritório ser bastante curto. 5 minutos num dia sem trânsito, ou seja quase nunca. Acho que foi uma boa decisão minha porque a bem ou a mal acabo por absorver mais sobre a cultura nacional. Seja a nível musical, o que significa que de vez em quando tenho de ouvir kuduro com letras bastante criativas como "tremura tremura", ou "cheira a xixi" (acreditem se quiserem). De vez em quando apanho alguns motoristas com gostos mais sensatos que se ficam pela bela voz da Yola Semedo ou pelas letras simpáticas do Anselmo Ralph. E certa vez, pasmem-se, apanhei um motorista que ouvia Lena D´Água (cantora portuguesa) a trinar o velho refrão "sempre que o amor me quiser."
A música é uma forma de me aculturar indirectamente mas as conversas são a obra-prima do aculturamento involuntário. Ontem saí de casa às 9h30 e estava de chuva. Resultado: trânsito infernal o que fez com que o motorista de serviço fizesse uma rota diferente para chegar ao destino. O cobrador perguntou-me se estava bem assim. Eu sacudi os ombros em jeito de assentimento e acrescentei, "desde que aí o mano conduza como deve ser, tudo bem."
O tal do caminho diferente também estava ligeiramente engarrafado e começava a ficar aborrecida até ao tutano quando de repente, os restantes passageiros (todos homens) começam a trocar ideias sobre as irmãs siamesas que foram para Portugal a fim de serem separadas. Os médicos da PT mandaram-nas para trás porque as crianças estão unidas pelo mesmo coração. Diante do facto, um dos passageiros perguntou e bem, "mas os nossos médicos aqui não viram mesmo que elas só têm um coração? Só se separam os siameses quando eles têm dois coração. Esses nossos médicos assim andam a fazer o quê então?"
Sim, foi uma boa pergunta e toda a gente assentiu com a cabeça. Menos um senhor que ia ao meu lado e disse,"você mesmo não sabe como funciona a medicina em Angola? Se até os governantes vão para fora para se tratar, xé."
Triste verdade. Toda a gente abanou as cabeças como que a dizer, "este país mesmo tá perdido."
Entre os olhares de desesperança, diz um viajante, "esse pai das bebés agora não vai querer mais fazer filho com essa mulher. Ela assim só lhe dá filhos desses." O que ele foi dizer. Estava a preparar-me para soltar o verbo quando o meu colega do lado soltou, "não tem nada a ver. O problema é do tal homem. Ela assim também se calhar não quer mais nada com esse aí." Seguiu-se mais outro silêncio, quebrado pelo som da rádio religiosa que pairava no ar, apesar dos protestos dos viajantes.
De repente ouço: "mas essas mulheres também. Toda a hora a fazer a manifestação contra a violência. Mas e nós homens? Vocês nos violentam bem mal (a esta altura o homem estava a olhar para mim) e nós não fazemos essas marchas, pá. O que vocês nos fazem dentro de casa não é de bem. Não é de bem, minha senhora", terminou ele dirigindo-se a mim. Desatei a rir como uma perdida. O sotaque caricato do homem, a escolha de palavras e a expressão facial provocou em mim um riso non-stop. Ele continuou: "porque a essa hora numa casa qualquer, está um indíviduo bem trombudo a passar a própria calça a ferro porque a mulher diz que não passa porque, ah quem te mandou chegar tarde ontem à noite? Vocês nos violentam. Isso assim não é de bem." Eu continuava a rir com as lágrimas nos olhos. Ele olhou para mim e perguntou: " e se a gente também fosse então marchar aí contra vocês?" Respirei fundo e sem conseguir parar de rir disse: "mas senhor, vocês estão à vontade para isso. Vão então marchar por aí."
O homem ficou muito sério e respondeu que não, que eles mesmo não querem andar aí a marchar desordeiramente como nós mulheres. Chegámos finalmente ao nosso destino e desci a rir. Caminhei até ao escritório a rir. Entrei a rir e comecei a trabalhar a rir.
Tenho de começar a gravar estas conversas de ocasião. Sem dúvida.