I
Terra vermelha é o que mais vê da janela do avião. Debruça-se para ver melhor as casas apinhadas e a pouca vegetação que se agigantam para o receber. Sente um frio na barriga porque de repente apercebe-se que a vida vai mudar da água para o vinho. Fecha os olhos e pensa nos amigos que deixou para trás. Ainda não pousou os pés em Angola mas já se arrepende da decisão de vir para o país que o viu nascer mas que abandonou com tenra idade.
Quando a porta do grande pássaro se abre, sente o ar quente e abafado. Percebe através das vidraças do pequeno aeroporto o movimento de gente e deseja que o pai ali esteja para o levar rumo ao desconhecido. O barulho dentro da sala onde espera pela mala é ensurdecedor e a demora pela bagagem exaspera-o. Quando por fim vê os seus pertences, decide caminhar em passos firmes para a saída onde encontra o pai de rosto envelhecido mas de sorriso aberto. Abraçam-se e entram no carro. Felizmente rodam a cidade embalados pela frescura do ar condicionado. Não presta atenção às palavras do pai e vai suspirando à medida que vê lixo empilhado nas ruas, crianças ranhosas e em cuecas a correr entre ratos e porcos pretos e a condução inconsequente de motoristas sem medo da morte.
II
Quatro anos se passaram e algumas coisas mudaram para melhor. Habituou-se ao caos da cidade e aplaudiu as melhorias feitas um pouco por todo o país. Deixava-se incentivar pelos pais e pelos poucos amigos que fizera e acreditava ter razões para continuar no país. Mas secretamente, deitado na cama à noite, sonhava com a terra onde crescera.
Tinha encontrado um bom emprego e sentia-se feliz com o trabalho que desenvolvia. Dava-se bem com os colegas e combinavam saídas juntos. As sextas feiras eram sagradas e ao som da kizomba e do rock, sacudia o corpo num frenesim apenas explicado pela luta interna com que se debatia diariamente.
Mantinha dois namoricos ao mesmo tempo mas com nenhuma pensava casar. Elas tentavam agarrá-lo com danças sensuais, gestos explícitos e doçuras treinadas em casa. Mas ele sabia fugir-lhes, não se prendendo a nada nem a ninguém.
Aos fins-de-semana pegava no carro e ia para longe da cidade. Refugiava-se na praia sozinho com os seus livros e observava o mar e o pôr-do-sol, imaginando a vida que poderia construir na terra que o viu nascer ou voltando para os braços da terra onde deixara raízes e amores perdidos.
III
E um dia conheceu uma mulher encantadora de longos cabelos negros que nada tinha a ver consigo. Ela era espontânea, bem humorada e tinha uma independência felina que o fascinara. Largou os namoricos e cercou-a de todas as maneiras. Foi uma luta renhida porque embora ela desejasse cair-lhe nos braços, fugia dele como o diabo da cruz. Até ao dia em que ele lhe disse que ia partir para a terra de onde nunca devia ter saído. Ela chorou e implorou para que ele ficasse. Cantou-lhe ao ouvido e fez promessas de amor. E o romance entre os dois foi vivido intensamente. Nunca casaram mas tiveram uma filha. Ela trabalhava numa ONG e dedicava grande parte do tempo às actividades profissionais, faltando a muitos compromissos familiares e descurando a criação da filha.
E numa noite fria de cacimbo, ela partiu-lhe o coração dizendo que se ia embora. Ele agarrou-se à filha e perguntou-lhe porque partia e para onde. Disse-lhe que o país era pequeno demais para ela e que o amor se tinha reduzido a pó. Um pó que se colava à pele e que dava comichão.
Ela apanhou o primeiro avião do dia seguinte. Ele soube mais tarde que ela estava na África Sul mas em momento nenhum pensou ir atrás dela. Sozinho com a filha, pensou regressar ao país que abandonara quatro anos antes. E agora tinha um bom motivo para voltar.
Mas qualquer coisa dentro dele fê-lo mudar de ideias. Até hoje não sabe se foi o olhar doce da filha. O medo de regressar. Ou o amor pela terra que o viu nascer.
6 comments:
Clara:Bem não como hei-de descrever o que senti ao ler esta história de vida(presumo que real) e felicitar-te pela divulgação aqui no teu cantinho...
Acontece Amiga, acontece, sim senhor!Romances aparentemente desfasados, mas verdadeiros!
É curiosa essa descrição da visão da terra vermelha quando sobrevoamos Lunda! Foi essa cor que me chamou a atenção quando pela 1ª vez, cheguei a essa terra linda!São impressões que ficam para sempre!Podes contar-me mais?Please!
beijinho
Jorge madureira
O nome é Luanda! Sure!
É a emoção a escrever!
Jorge madureira
Oi Jorge,
ainda bem que gostaste do texto. Também eu fiquei emocionada por teres gostado tanto! Dá-me vontade de escrever mais e melhor!!
Posso contar-te mais sobre as impressões que se tem quando se chega a Luanda. Poderei fazer isso num outro post, ou queres que faça isso no teu blog? No espaço dos comentários?
Bjks
Clara: Ambas as portas estão abertas para Ti!A partilha das nossas emoções não tem lugar certo!Basta gostar!
beijinho
Jorge
Belo texto, muito bem escrito e cheio de sentimento.
Parabéns, Clara.
Beijinho.
Obrigada Fevereiro. Fico contente por teres gostado.
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