Tuesday, June 24, 2008

O comba

Ele morreu silenciosamente. Abraçado à companheira de 30 anos e mãe dos seus sete filhos. Fora os outros tantos que concebeu longe do santo lar. Não teve tempo de suspirar um “minha velha tou a bazar” ou “minha velha apesar dos pesares sempre te amei”. O cancro consumiu-lhe a próstata até à exaustão. Roeu-lhe a vida e parte das poupanças. É duro ser doente em Angola. Ainda foi à África do Sul buscar ajuda, mas a coisa já estava mal parada e resignado, decidiu dar o último suspiro perto dos seus.

Quando soube da notícia, sentiu-se morrer antes do tempo. Perdeu a cor, logo ele que tinha a pele escura como a noite. Reuniu a família, pais, filhos, cunhados e esposa e contou-lhes a sua desgraça. Disse que não sabia quando se juntaria ao Criador mas que seria com certeza em breve. Muito breve. Logo se ouviram lágrimas, queixumes sofridos e palavras de conforto sem esperança. Ele deixou-se envolver para logo a seguir pedir calma. Disse que queria aproveitar os últimos momentos. Fazer o que nunca pôde como andar na montanha russa, levar a mulher a conhecer a Namíbia e aproveitar para levar o carro aos 180 quilómetros/hora, fazer as pazes com o irmão inimigo e tratar do seu próprio comba. Comprou inúmeras grades de cerveja e gasosa. Deixou dinheiro para se comprar frangos para assar. Aproveitou e comprou a potente aparelhagem que andava de olho há meses, porque como ele mesmo dizia “quando estiverem a velar pela minha alma quero ouvir os sucessos do Burity”. No meio da correria, impôs apenas uma condição. Não queria carpideiras contratadas. Já que se ia mudar para a cidade das tabuletas, então que o bairro inteiro ouvisse choros genuínos.
A mulher não entendia aquelas decisões e convenceu-se que o marido estava assim desatinado por causa da doença do caranguejo, como ela lhe chamava. Procurava persuadi-lo mas ele dizia que não, “pois que a morte é minha e quero organizá-la como deve ser”.

Ia religiosamente fazer o tratamento. Não sabia se por rotina ou vontade de viver. O cabelo crespo caía e o corpo ia largando a vida sem resistência. Metia-se com as enfermeiras e vangloriava-se do número de filhos feitos com outras mulheres. Afirmava para quem quisesse ouvir que “o facto de estar careca e magro não me retira o prazer de olhar para uma mulher e se me derem a oportunidade, ainda faço um filho ou dois”.
A mulher conhecia estas gabarolices e fez-se de morta. Sempre soube das outras mas pautou pela discrição, afinal de contas, tinha muito a perder se armasse confusão ou se o pusesse contra a parede. E ao final de 30 anos de um casamento com altos e baixos, sempre soube que estava ligada àquele homem por um qualquer motivo desconhecido, embora até à data nunca tivesse partilhado este sentimento com ele.

Então, na noite anterior à morte do marido, depois do jantar e de uma conversa sobre os tempos de juventude, ela saiu-se com “desde esses tempos que gosto de ti”. Os olhos dele brilharam e ela espantou-se porque há muito não via aquela luz. Percebeu que o devia ter dito há mais tempo e sentiu-se invadir pelo remorso. E ele sem dizer palavra, envolveu-a num abraço com anos de companheirismo.
Quando ele morreu, sentiu-se aliviada por ter-lhe confessado aquele amor. Cumpriu o comba organizado pelo marido à risca. Impediu a entrada das amantes e dos filhos desta. Uma coisa era saber delas e outra muito diferente era deixá-las entrar naquele mundo construído a dois. Ela própria consolou os filhos, sem verter uma lágrima.

Foi um belo comba. Os choros ouvidos pela vizinhança eram genuínos e foram apenas suplantados pela voz límpida do Burity que cantava, ”para quê falar da minha vida, minha sina é mesmo assim. Meus pecados cometidos Deus já perdoou, eram tão leves que logo apagou”...

Obs: comba = velório

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