Thursday, June 19, 2008

Crónicas da minha terra

Saio do trabalho às 18h00 e dirijo-me a pé para casa. Vou apressada porque estamos no tempo do frio e escurece mais cedo. Tenho a bolsa a tiracolo, os punhos cerrados e ando com passo firme. Levo o ipod dentro do soutien e tenho o fio debaixo da camisa para afastar eventuais ladrões. Bem sei que não devia andar com o meu pequeno tesouro na rua mas custa-me caminhar sozinha durante quinze minutos, sem ouvir as minhas músicas predilectas.
O telemóvel está no silêncio. Custou-me uma pipa de massa e não me interessa perdê-lo em meia dúzia de minutos entre gritos alucinados de “passa para cá o telefone senão levas um tiro”. Devia seguir o exemplo de muita gente que compra daqueles telefones que custam quase nada. São telefones comprados especialmente para os gatunos, estão a ver? Que se for preciso o malandro pergunta, “ não tens vergonha de andar com uma bomba dessas? Devias ainda levar duas bofas para aprenderes”.
A fim de evitar encontros dessa natureza vou à beira da estrada e olho para todos os lados. Quem me vê ao longe talvez pense que sofro de alguma mania, mas a violência anda à solta e todo o cuidado é pouco.
Quase não consigo apreciar a música que toca nos meus ouvidos porque encontro-me em estado de alerta. Abrando quando avisto o hotel cercado de seguranças. Paro por instantes porque preciso descansar as pernas. Vinha com um tal speed que sinto os músculos quentes e doloridos. Digo boa noite aos homens por simpatia e porque se no futuro estiver em apuros, eles podem ajudar-me.
Sigo em frente e preparo-me para atravessar a rua. Embora esteja perto do sinal que indica local de passagem para peões, os condutores ignoram a minha presença e passam a alta velocidade. Após dois ou três minutos de espera decido-me a atravessar destemida entre carros, carrinhas e motas. Estou no meu direito e faço a travessia de peito estufado porque tenho prioridade.
Quando já estou a meio da passadeira, uma condutora lembra-se de acelerar para me obrigar a correr. Quase me atropela e sai-me um “p* do caraças”! A tipa responde-me à letra e chama-me vaca. É que ela está cheia de razão, percebem? Caramba, o que estava eu a pensar quando decidi atravessar na passadeira?
Sinto a raiva tomar conta de mim e juro começar a carregar um calhau na bolsa para atirar ao vidro dos carros de todos aqueles que tentarem atropelar-me em plena passadeira. Bem sei que não é uma atitude politicamente correcta, mas fico doente com a falta de civismo da maioria dos condutores.
Quantas cenas já vi? Como aquela do candongueiro que para livrar-se do trânsito pôs-se em sentido contrário. Ou do condutor que passou o sinal vermelho e ia batendo noutro carro. Ou dos distintos automobilistas que decidem fazer do passeio a sua estrada privada, sem sequer buzinarem ou abrandarem a velocidade para evitar o atropelo dos transeuntes. E há também o caso daquela senhora que conduzia afoita em contra-mão na rua do Karl Marx que como quase toda a gente sabe, já só tem um sentido. Os guardas bem gritavam em jeito de aviso, mas a senhora parecia estar noutra realidade.
Aonde é que andam a tirar a carta de condução? Será que sabem para que servem os sinais de trânsito? Será que não sabem que um veículo é uma potencial arma? Será que desconhecem que para conduzir é necessário consciência e respeito pelos outros?
Após atravessar a segunda passadeira e passar pelo mesmo filme da primeira, avisto a entrada da minha rua. Mais uma vez está sem luz mas noto que o piso está uniforme. Olho para baixo e percebo que começaram a asfaltar a rua e fico contente, sem imaginar que três semanas mais tarde a área asfaltada não passará dali. Penso que é assim mesmo que as coisas funcionam. Começa-se mas nunca se sabe quando terminará.
Antes de chegar a casa dou dois dedos de conversa com a vizinha da frente. É uma mulher nova mas tem os olhos baços e o ar resignado de quem se habitou a esta vida dura que alguns e apenas alguns andam a levar. Queixa-se, “vê tu bem que continuamos sem luz e já lá vai uma semana. Não tenho dinheiro para comprar gerador e nem posso assar peixe no forno”.
Estou cansada demais para me juntar ao protesto. Digo-lhe “vamos fazer mais como?” como se não houvesse mesmo nada que pudéssemos fazer e dirijo-me para casa. A família está toda lá, a tratar dos afazeres com as velas na mão e a queixar-se porque não vai dar para ver a novela.
Atiro-me para a cama e custa-me adormecer. Quando finalmente entrego-me aos braços do deus do sono, assalta-me um rasgo de esperança e sinto que talvez o futuro nos traga dias melhores.

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